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Antes tarde que mais tarde ainda

by Letícia Leiva

Foto: Danilo Alvarez

Há dias que começo e paro de escrever esse texto. Comecei a escrita pra compartilhar em minhas redes sociais sobre quando vi Tarcísio Meira em cena, mas as palavras foram me levando pra outros rumos. Entendi que eu queria, emocionadamente, falar sobre Teatro

Tentei de novo e não consegui. Fiquei numa azia, que posso dar nome e sobrenome, nos últimos dias. Pancada atrás de pancada.

Hoje acordei e uma das primeiras coisas que vi foi um vídeo da Babi Amaral em homenagem aos dois mestres, Paulo José e Tarcísio Meira, que perdemos na semana passada. Acordei chorando. Lembrei de novo do desejo de escrever esse texto. Através dele eu gostaria de expressar a importância que esse tal Teatro tem pra mim, e acho que por isso tá tão difícil de concluir. É como se eu não tivesse condições ou ferramentas para conseguir explicar isso, apesar de querer. Isso costuma acontecer comigo. Apesar de querer, eu não consigo.

 (não dá mais dizer Apesar de Querer sem lembrar da música do Rodrigo Alarcon, então aproveito pra deixar essa indicação aqui)

Ainda de manhã, depois do vídeo da Babi, me lembrei de uma conversa breve que tive com meu pai ontem. Eu e ele somos muito parecidos e, por isso, já tivemos muitos e muitos embates. Meu pai é quase um espelho. Eu vejo agonias, dores, forças, impulsos, esperanças nele que também ressoam em mim. Herdei desse homem muitas coisas – que inclusive eu não queria. Custei a entender que, na maioria das vezes, meus julgamentos eram exatamente sobre mim. E costuma ser assim, né?! Mas nós seguimos para direções diferentes, que se conectam lá na frente, em um ponto da nossa vida. Eu seguia um caminho até que o Teatro me convidou pra outro. Eu reproduzia comportamentos, opiniões, atitudes – que nem faziam sentido pra mim – e o Teatro me olhou e disse: tem certeza? é isso mesmo que você pensa? que você sente? tem certeza que você quer seguir por aí? 

E eu não tinha. Foi só Ele me fazer essas perguntas que eu tomei um susto. Eu sabia, de cara, todas as respostas: não, eu não tenho certeza, eu, na verdade, nem sei dizer o que eu penso, sinto que, inclusive, eu nem tenho pensado sobre muitas coisas, eu não sinto isso e esse caminho não me afeta. Isso me lembrou Bethânia dando voz ao Cântigo Negro. Ouvir essa mulher me deixa de coração cheio e olhos marejados. É uma das coisas que me dá o que chamo de pulsão de vida. 

Não sei por onde vou / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!

Depois de tanto lutar pra tentar dizer ou entender a importância do Teatro na minha vida, acho que encontrei. Tem tudo a ver com o coração cheio e olhos marejados que falei ali em cima. Quando isso me acontece sei que essa tal pulsão tá aqui comigo. E minha luta é manter ela junto de mim, apesar do mundo inteiro parecer tentar o contrário. Eles querem, a todo custo, arrancar isso da gente. Eles querem que a gente pare de sentir. Eles querem pessoas produtivas, incansáveis, maquinárias, obedientes, perfeitas, filtradas e por muito tempo da minha vida eu caminhava nessa lógica, nesse sistema absurdo, na tentativa falha de alcançar um ideal que é completamente falso. Eu caminhava em direção a morte. E o Teatro me pegou pela mão e me convidou pra, antes de pensar o destino do caminho, me atentar ao agora. Ao aqui e agora. Eu nunca ouvi tanto aqui e agora como no Teatro. 

E voltando à conversa com meu pai, foi justamente esse ponto que apareceu. Enquanto esse homem, que tanto admiro, me apresentava suas angústias, eu só pensava em dizer pra ele: não vá por aí. Se você for por aí, meu pai, você vai abatendo os dias do calendário e passando inexistente por todos eles. Eu sei que os problemas são muitos, eu realmente sei. A casa, as contas, os filhos, o trabalho, a infecção no intestino, a injustiça, a corrupção, o Brasil. Apesar de adorar ser uma romântica sobre tudo, nesse momento eu juro que não estou sendo e sei, sim, de tudo isso. Mas eu me recuso a ir por aí porque eu tive o que me apresentasse outras estradas e jeitos de andar: o Teatro. 

Quando eu disse que as direções que eu e meu pai seguimos foram diferentes, mas se conectavam lá na frente, era sobre o Teatro ter me chamado e eu ter tido a possibilidade de ir e sobre a Poesia e a Música terem feito o mesmo convite pra ele que, diferente de mim, por diversos motivos, não foi. Os rabiscos e composições do meu pai estão na gaveta e eu consigo imaginar o quanto ele se sente vivo quando as escreve – mas isso não foi uma possibilidade de caminho pra ele. Isso tudo ficou pro depois. Depois que nunca chega. Pelas próprias condições de vida que ele batalhou pra me dar, eu consegui dizer sim pro Teatro. Eu sou artista. Tenho também várias coisas na gaveta, mas muitas outras eu pude colocar pra fora. Não tô tão engasgada como imagino que ele esteja. Pra mim, foi possível experimentar a arte de diversas formas e eu sinto que foi só isso que me salvou. Hoje eu sou melhor e ainda sinto que sou ruim demais da conta. Nossos parâmetros ficaram muito baixos. Parece que não conseguimos fazer o mínimo e foi através de aulas e peças teatrais que eu me dei conta disso. Foi como se tivessem limpado minhas vistas e eu passei a enxergar várias coisas que ignorava – o que é muito doloroso, mas muda a gente por inteiro.

Essa publicação vai chegando ao fim, e agora percebo que só no fim eu chego no pensamento que deu início a essa verborragia: ainda há tempo e sempre há. Um dos primeiros espetáculos que eu vi na vida foi em 2016 e era “O Camareiro” com o Tarcísio Meira, no Palácio das Artes. Eu lembro que fiquei impressionada e me dei conta que isso só tem cinco anos. Hoje me sinto gente de teatro, usando as mesmas palavras das trocas de cartas de Fernanda Montenegro com Paulo Autran, mas isso é recente. Só passei a frequentar Teatros depois que mudei para BH. Antes disso, eu namorava essa artesania nas apresentações da escola e nos espetáculos de dança em Sete Lagoas, cidade que fui nascida e criada. Assisti uma peça ou outra nessa época, mas mal me lembro. E posso citar vários motivos para esse encontro tardio, mas isso já vira outra conversa.  

Já lamuriei esse tempo perdido com o teatro muitas vezes. Me sentia correndo atrás do prejuízo por não ter tantas referências e vivências nos palcos e nas plateias, mas tudo é uma questão de como a gente direciona o nosso olhar. Agora eu respiro com alívio. Antes tarde do que mais tarde ainda. Que bom que o Teatro me achou e eu disse sim pra ele. Sempre é tempo de mudar de rumo, de começar de novo, de não ter aquela velha opinião formada sobre tudo – que bom! 

Dedico essa publicação ao meu pai, um dos artistas mais brilhantes que já tive notícia, ao doce Paulo José e ao gigante Tarcísio Meira.

Agradecimentos: Bárbara Prado e Matheus Carvalho

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