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Grupo Galpão: troca de afetos em tempos de pandemia

by Letícia Leiva

Ei, gente! eu sou a Letícia Leiva e venho fazer um convite pra vocês: bora falar, pensar, sentir, trocar, fazer, discutir, espalhar TEATRO?

Esse cantinho aqui dentro do Pula foi pensado pra isso, e eu topei ocupá-lo por motivos diversos que vocês vão descobrindo aos poucos. Um deles é a minha paixão pelas artes cênicas, que ganhou força em 2017 quando comecei a fazer estágio na comunicação do Grupo Galpão de Teatro

Foto: Grupo Galpão por Guto Muniz

O Galpão me virou do avesso, me escancarou as portas desse universo e eu fui toda! Ainda encontraremos outras brechas para falar sobre como essa experiência influenciou o meu caminho de atriz e comunicadora cultural por aqui.

Dito isso, não tinha outra forma de começar essa coluna. Compartilho então uma troca de cartas e afetos que eu propus ao elenco, de 12 atores, do Galpão – uma das maiores companhias de teatro do Brasil e do mundo com quase 40 anos de história.

Como foi isso? Bom, eu gosto um tanto de conversar – de saber e contar histórias, relembrar casos & declarar amores. Fiquei curiosa com o que um diria pro outro, através da carta que tem caído um tanto em desuso. Essa relação de tantos anos do elenco tem muita coisa pra contar, e propor esse amigo-carta me pareceu interessante. Eles, gentilmente como sempre, toparam. (Galpão, já ficou repetitivo eu dizer obrigada pra vocês tantas vezes, mas: obrigada). O sorteio de quem escrevia para quem foi aleatório e secreto, e a íntegra desses escritos  vocês encontram no fim desse texto, que já tá acabando.

Também registrei a entrega dessas cartas, que foram feitas pessoalmente na casa de cada um. Isso vocês podem conferir no Stories do Instagram do Pula! @pulabh

Por fim, quero dizer que por aqui eu pretendo compartilhar conteúdos diversos relacionados às artes cênicas. Não, não é um espaço de crítica teatral. Não é um noticiário. Não é, necessariamente, uma agenda. Aqui poderemos nos encontrar através de vídeos, entrevistas, crônicas, fotografias, e tudo mais que bater de ideia.

Espero que vocês topem acompanhar o que está por vir!

Além daqui, vocês me encontram no

Clique na cartinha pra ler, na íntegra, cada correspondência.

Simone, 

Que delícia te escrever uma carta. Fiquei pensando que já estamos há quase trinta anos caminhando juntas pelas estradas da arte percorridas com o Galpão. Mas, antes de te conhecer pessoalmente, trabalhando no Galpão, eu já tinha te admirado algumas vezes no palco. Impossível não lembrar de você nas montagens da Cia Sonho e Drama, em espetáculos como Vida de Cachorro, Caminho da Roça, nunca esqueci sua personagem que me fez rolar de rir por vários dias, sua direção do Pastelão e a Torta, A Casa do Girassol Vermelho…. Uma atriz inteira, uma artista cativante. Depois, começamos a caminhar juntas. Tantos trabalhos, tantos processos de criação vividos intensamente, que a gente acaba criando uma conexão especial. 

Gosto de lembrar de nossas aventuras de coxia. Como esquecer nossas personagens do espetáculo PARTIDO?  Você era idosa de um lado e a cabra do outro e eu, era idosa de um lado e a Pamela do outro. As velhotas, apaixonadas por Francisco Cuoco, só entravam em cena animadas quando imaginavam que “Cuoco” estaria na plateia… Inumeráveis momentos de cumplicidade, nas tristezas e alegrias…. Quantas turnês, camarins improvisados, arranjos de última hora…

E pelo nosso caminho te ofereço algumas palavras de Clarice Lispector:

“Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas altas. Era uma ‘esperança’, o que sempre me disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o colchão. Era verde transparente, com pernas que mantinham seu corpo plano alto e por assim dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias pernas que eram feitas apenas da cor da casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão rasa já é a própria superfície. Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel, verde e andasse… E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para mim… Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes.”

Por que palavras de Clarice? Porque sempre reflito sobre como olhamos o mundo ao nosso redor. Clarice tinha um modo excepcional de descobrir o mundo.  E você, sempre me surpreendeu com olhares que buscam lugares improváveis, miradas criativas, para abrir possibilidades no cotidiano. Ver com espanto e curiosidade aquilo que temos todos os dias ao nosso lado, é sinal de imaginação solta.  E isso, a gente gosta de cultivar.  

Confesso que estou com muita vontade de entrar numa sala de ensaio e começar um novo processo criativo com você. 

Te gosto muito

Saudades de te encontrar pessoalmente e tomar uma cachacinha.

Inês

Belo Horizonte, 18 de março de 2021

Querida Inês,

Chegamos juntos ao Grupo Galpão, para começar os ensaios de “Romeu e Julieta”. Você, recomendadíssima por seu currículo, mas ainda uma jovem atriz em busca de experiências. Eu, vindo de uma geração bem anterior, com a experiência meio ultrapassada, mas ainda curioso e com boas sobras de energia. Somamos nossa bagagem à daqueles desbravadores, que já rascunhavam, para dias não muito distantes, a trajetória de um dos grupos mais importantes e festejados do país. Dentro dele, vivemos, todos juntos, dias, anos, de vasto e insubstituível prazer, nos palcos, nas ruas, nas estradas, nos incontáveis hotéis e pousadas, nos restaurantes, cantinas e bares, por todo o Brasil e em inúmeras praças estrangeiras, nos braços de um público variadíssimo, mais que entusiasmado, mais que caloroso, quase sempre apaixonado. 

Longe dos olhos desse público, ao largo do êxito e dos aplausos, vivemos outras histórias e acumulamos outras experiências, inalienáveis, de uso pessoal e intransferível. O enredo de nossas relações, do reconhecimento de uns e outros, dos afetos que floresceram, descobrindo a configuração do conjunto e o recorte de cada um. 

Quando soube, pela Letícia, que me cabia escrever a você, Inês, me lembrei da improvável convergência, preparada pelo acaso naquele 1992, do seu caminho e do meu, da sua e da minha história, dos seus e dos meus sonhos. Hoje considero esse encontro uma feliz decisão do acaso, que me brindou com o seu convívio e, pouco a pouco, com a suave construção de um afeto, que me soa mútuo, o que a mim me afaga e me envaidece.  

Encontrei na atriz uma batalhadora de fibra, com talento extraordinário, criatividade rica e intuitiva. Sem falar na energia Inês-gotável (com a licença da Sra. Capuleto). 

Na mulher, doçura e pertinácia, dedicação e firmeza, atributos com que você recosturou, em sua união com Eduardo, a tessitura de uma família rompida pela dor.

Na amiga, a companheira leal, a disposição para a alegria e a descontração nas ocasiões oportunas, a importante voz conciliadora, nos momentos marcados por discordâncias. E palavras reconfortantes, delicadas, oferecidas generosamente a quem delas precisasse.  

Por tudo isso, escrevi esta carta. Só pra lhe dar um beijo.

Arildo 

Feinha,

A gente tem andado meio distante, né? Mas distante mesmo tem ficado a capacidade de levantar pela manhã, fazer planos, seguir em frente… efeitos pandêmicos ou só do tempo? 

Mas eu e você, quando a gente se fala é como se esse tempo não existisse, a distância é mera formalidade, tem uma coisa plantada ali bem no meiozinho da nossa história que não se desfaz, me agarro a isso com força agora.

Das aulas de música na escolinha Villa Lobos, passando pelo Trans-Forma, 1o Ato, até chegar no Galpão, são tantas histórias, tantas vidas! Do nada me vêm imagens embaralhadas

De quando seu cachorro mordeu minha perna na sua casa da pampulha, a gente tomando sopa gelada de beterraba 

De quando sua mãe – querida Nazaré – foi de surpresa te buscar lá em casa às 8 da manhã, eu amassada de sono falando pra ela que você já tinha saído…

De quando fizemos nossa primeira turnê nacional com o Escolha seu Sonho, e a gente é que tinha que afinar os refletores, porque não tinha esse negócio de equipe técnica não. Eu no alto da escada e você segurando pra eu não cair…

De como eu me irritava quando você e Lelena entravam no ônibus tranquilamente sem mostrar documento e eu, orgulhosamente a mais velha das três, sempre tinha que provar minha idade

De quando Zuzu era pequenininha e eu deixava meu carro pra você fazer sacolão enquanto eu dava aula.

De quando estávamos montando o Tigarigari e em plena correria do ensaio demos juntas com seu olho amarelo de hepatite no espelho! 

Da turnê na Europa e o campeonato de totó no bar em Sevilha que ganhamos da dupla masculina, para espanto dos espanhóis. Maria Rosa dançando flamenco de chinelos – aprendi na rua…

Por sua causa voltei a estudar piano – que não tocava há, sei lá, uns 20 anos, pra te substituir no Molière – Alice e Lucas, Helena e Júlia, quanto amor envolvido aí.

De quantos e tantos camarins, teatros, ruas e salas de ensaio!

Há alguns anos, já no Galpão, você me tirou de amigo oculto numa festa da firma, e começou dizendo assim: “a minha amiga oculta é escancarada”. Sou eu! Claro! Pois então hoje te plagio e te devolvo essas palavras com vontade de mais memórias, e acrescento: esclarecida, marmelada, amada, ninguém sabia…

Até breve, querida, um beijo de saudades

Lydícula

Belo Horizonte, 08 de março de 2021

Chico, querido companheiro de tantas estradas,

estamos sumidos um do outro, ou melhor, estamos todos sumidos. Neste momento tão triste em que vivemos me deu vontade de lembrar, lembrar de nossas presenças e encontros.

Me lembro de você, ainda um desconhecido, vindo na casa de minha mãe e na sala de jantar me entregando em mãos três páginas de texto para que eu estudasse, pois no outro dia teria um teste, teste este que mudaria minha história.

Me lembro da escuridão, até que uma lanterna fosse acesa e revelasse aquele grande vão sujo e destruído, que mais a frente se tornaria o mais importante centro cultural da nossa cidade, me lembro do brilho de seus olhos e do sorriso nas palavras, como que vendo com olhos futuros.

Me lembro de uma apresentação em uma cidade bem longe, onde uma van ficava parada atrás do palco esperando que sua cena acabasse e você corresse para pegar o avião que te levaria ao enterro de seu pai. De figurino e ainda pintado de palhaço você entrou naquele carro e foi. Eu, na coxia a céu aberto, via a van se afastando enquanto ouvia o riso da plateia e a voz dos atores, aquilo foi triste, belo e profundo. 

Me lembro da primeira vez com o Romeu e Julieta em Londres quando ficamos em um alojamento de universidade. Ficamos vários dias e na cozinha comum você criou o jornal “Que Passa”, que contava diariamente as peripécias dos mineiros no país dos Beatles. Quis muito que o “Que Passa” continuasse para sempre registrando com muito humor e carinho a nossas vidas.

Me lembro de uma vez quando peguei uma carona com você para voltar para BH após o fim de um espetáculo e o carro de repente parou na estrada, começamos a ver umas luzes estranhas a frente e por uns minutos imaginamos que estávamos presenciando um contato imediato do segundo grau, até que o carro voltou a funcionar e caímos na gargalhada. E você sabe gargalhar, saudades do seu riso solto até as lagrimas, mas sei que os tempos não estão para sorrisos. 

Me lembro de ficar admirando e observando como você era ótimo ator de rua, você parecia que tinha nascido para isso. Falo no passado, mas na esperança de que a rua te conquiste de novo e assim você volte aos seus braços de onde nunca deveria ter saído. 

É claro, me lembro de momentos desencontrados, momentos obscuros, mas uma convivência de tantos anos passa por todos os tons, de outra forma a música da vida seria muito tediosa.

Nos encontramos jovens e juntos envelhecemos, bonito isso, bonito mesmo. Acho bonito envelhecer, é calmo. É como virar avô, a gente fica só com os bons momentos, espero. Nossas crianças não são mais crianças e sempre serão crianças. A veraneio está na garagem há tanto tempo e nunca esteve tão viva no mundo da imagem digital. Acho bonito envelhecer porque a gente pode ver a construção.

Sei que pareço muito saudosista, mas não, tudo o que foi ainda é, e o que está em branco certamente vai surpreender. Não foi saudosismo, foi saudade de você, de nós.

Grande beijo                  

Júlio

Tenho pavor de fios. Cabos, fios, usb a, usb b, c,  principal, coadjuvante, flexível, invisível, aparente, atrapalhante, detesto todos. Felizmente no Grupo Galpão temos de tudo, inclusive gente que domina e desconfio que até gosta de fios. No caso, Beto Franco.

É só dar uma pane, ou simplesmente não conseguir ligar, ou simplesmente pedir pra guardar que se ouve um grito: Beeeeto!!! E ele sempre vem, com a calma e solicitude que lhe é peculiar. Mesmo se estivermos a um minuto de abrir a casa e entrar em cena, ele vem com “calma gente” e resolve as questões irritantes da técnica que enreda os fios. Argh!!

Fizemos uma linda turnê pela Espanha, começando pelo Festival de Cádiz. Ficamos lá alguns dias, apresentamos nosso “Romeu e Julieta”, fomos à Holanda e voltamos para apresentar “A rua da amargura”. Ficamos hospedados em um hotel balneário onde não tínhamos telefones nos quartos e quando a recepcionista precisava chamar alguém no quarto todo o Hotel escutava pelas caixas de som que abarrotavam os corredores: 

 

– Habitación 201, el Sr. José está esperando en la recepción.

– Habitación 307, llamada telefónica a la Sra. María

– Habitación 202, la administración debe hablar con el Sr. Pedro

Como se não bastasse havia a mesma terrível voz feminina nos elevadores:

– este ascensor sube!

– este ascensor baja!

– cerrando puertas!

Todo mundo chegando tarde das apresentações e querendo dormir e a voz infernal española massacrando nosso sono. Eu e Rodolfo ainda estávamos com nosso filho de 11 meses, Lucas, que custaaaaaava  dormir. 

De repente, de um dia para outro, as caixas de som do quarto andar, onde estávamos todos, silenciaram. Um oásis no hotel. Nem o elevador falava mais. 

Eis que surge Beto Franco andando pelo corredor com seu inseparável canivete e um baita sorriso no rosto! “Pronto, tudo resolvido!”

Que maravilha! 

Fios! Tê-los ou não tê-los!?

Pergunta pro Beto!  :0)

Fernanda

Lydia querida,

Sempre fui fascinado por sua capacidade de se entregar ao trabalho. A forma como você mergulha de cabeça em todos os processos, sem medir esforços, com absoluta dedicação e fidelidade ao trabalho de grupo, é algo arrebatador. 

Lembro de nossos primeiros encontros nos salões do Transforma da sua tia Marilena, no velho prédio do colégio Arnaldo. Como você já era um foguete, sempre participando ativamente das aulas e de todas as atividades. Um desses momentos inesquecíveis aconteceu numa oficina com o diretor Ilo Krugli, que juntou uma turma muito especial tanto do teatro como da dança. A dança moderna pulsava criatividade, integrando-se cada vez mais ao teatro e a outras expressões. 

Alguns anos depois trabalhamos juntos na produção do espetáculo “Triunfo, um delírio barroco”, uma produção do Palácio das Artes, que teve direção de Carmen Paternostro e que juntou em cena o corpo de baile da fundação, alguns percussionistas e o Galpão.  Ali conheci mais de perto sua incrível capacidade de organização do trabalho, seu olhar aguçado de coreógrafa, sua visão de cena e de conjunto, o conhecimento fino que você desenvolveu ao longo de anos de prática de como moldar e dispor os corpos no espaço e no tempo.

E, melhor do que tudo, você se transformou em minha colega de grupo Galpão, entrando no espetáculo “Romeu e Julieta” e trabalhando em “A rua da amargura”. O Galpão tem o privilégio de contar com a sua energia sempre positiva e disponível para o que der e vier, plenamente disposta e disponível, com seu largo sorriso e seu jeito delicado e bem humorado de lidar com as coisas e as pessoas. Sempre considerei que o tesouro mais precioso do Galpão é a sua capacidade de abrigar as personalidades artísticas mais diversas e todas elas, muito especiais. Qualidades tão heterogêneas e ricas, cada uma dentro de sua especificidade, que constituem esse caleidoscópio. Nesse céu estrelado, brilha sempre, de forma tão intensa e especial, a sua estrela.

Obrigado por tudo, querida Lydia.
Eduardo 

A valentia do Eduardo ou como diria Paulo José “o teatro, tal como a vida, é cheio de imprevistos“.

Uma das situações mais difíceis que passamos nas nossas apresentações foi durante a carreira do espetáculo “Um Homem é Um Homem”. Estávamos fazendo a última apresentação no festival de Curitiba quando, já quase ao fim do espetáculo, o Eduardo, ao saltar de um barril que fazia parte do cenário, torceu violentamente o joelho. Todos percebemos na hora e num esforço incrível, sendo apoiado e se apoiando nos colegas e no cenário, ele chegou ao fim do espetáculo se contorcendo de dor.

A lesão foi séria. Alguns dias depois iríamos estrear em São Paulo e estávamos sem saber o que fazer. Viajamos cheios de dúvidas. 

O hotel ficava bem perto do hospital das clínicas e hospedava um sem número de pacientes com as mais diversas moléstias e obviamente tinha várias cadeiras de rodas disponíveis para os hóspedes. Não é que o Paulo José, vendo o Eduardo se locomovendo em uma delas, teve a sacada genial de adaptar o espetáculo colocando o soldado Uria Shelley numa cadeira de rodas como um mutilado de guerra. Perfeito. Ficou tão bom que, mesmo após a recuperação, a modificação foi mantida pelo resto da carreira do espetáculo.

Voltando ao nosso hotel de estropiados, você pode imaginar como estava nossa produtora Gilma, tendo que lidar com tantos imprevistos. Mas uma super produtora traz sempre ótimas soluções. 

Quando chegamos ao hotel, ela já estava num táxi, preparada para levar o Eduardo para o hospital. E enquanto ele, gemendo de dor, implorava pra que não fosse operado, ela ao colocá-lo no táxi, bateu a porta e esmagou-lhe os dedos. Pronto, a dor no joelho tinha passado.

Beto

Carta para o Toninho

Compartilho com você essa nossa luta de estar no mundo vivendo de forma mais equilibrada como os animais e pensando como  os poetas que falam da ética como alimento imprescindível  para a amizade.

Ficava muito feliz escondido por uma tapadeira,  anônimo, lançando pratos precisos para seus voos de Arlequim.

Chico 

cartapoema para júlio 

 

belo horizonte vinte e dois de fevereiro do ano de dois mil e vinte e um

jú júl júli july júlio julinho julin fonseca maciel fonseca 

belêzzzz 

belêzzzz 

fui convidado a te escrever 

e desde então venho 

fiquei 

estou aqui 

quebrando a cabeça 

querendo não 

buscando 

perseguindo 

indo atrás 

meio quase que sofrendo 

atrás de uma ideia 

que não entra 

não está aqui 

na minha cabeça 

fugindo a toda hora 

para te escrever 

então me dei conta 

pensando 

refletindo 

e já sem sofrer 

me perguntei 

a mim 

meus botões 

por que diabos eu preciso de uma ideia para te escrever se eu posso falar qualquer coisa 

ou não falar coisa alguma 

sem ideia 

para você 

que é tão próximo 

e durante tanto tempo que estamos mais que próximos 

mais que juntos 

em teatros 

camarins 

ônibus vans caminhões 

aviões carros 

hotéis quantos 

salas mesas ensaios 

cafés copos cervejas 

baseados no calor da vida 

da ficção 

das personagens 

dos textos 

dos colegas 

do grupo 

grupos quantos 

diretores 

figurinos 

cenários 

luzes 

sarrafos 

bambolinas e rotundas 

urdimentos infinitos 

ensaios passagens de som 

de sons 

de horas 

madrugadas de horas perdidas 

isqueiros perdidos 

atrasos 

esquecimentos 

lembranças perdidas 

frios 

chuvas 

muito sol 

sóis 

calores 

amores 

afastados agora faz um ano e outro ano agora 

outra vez 

uma ideia para estarmos juntos 

outra vez 

e ouvir belêzzzz 

outra vez 

outro copo quebrado de café derramado 

outro dia mesmo 

em guarulhos 

estávamos perdendo um voo e achando outro 

e agora eu sinto e desejo perder e achar você 

outra vez

nas esteiras rolantes de confins 

nas ruas de madri 

no labirinto de corredores do teatro guaíra 

do nelson rodrigues 

no palco 

na luz 

nos cenários 

nas mesas 

nos hotéis e cozinhas 

e baús e cargas 

e sonos e cochilos fáceis 

e nos silêncios das faltas de ideias que nos seguem e emudecem.

saudade 

pa 

Ei Paulo André, ei meu querido!

Que saudade! Que saudade! Agora vamo tentar mandar uma carta aqui pra ver se a gente sai da telinha e mata a saudade pela carta…

Ah, eu tenho saudade de tudo, Paulo André! Tenho muita saudade do cê! Tenho saudade… Outro dia na aula da Waneska, na hora que ela mandou puxar as orelhas pra baixo, pra cima, pros lados, puxar as orelhas e tal, eu falei: meu Deus, que saudade do Paulo André puxando minha orelha antes do “Nós”! Ah, minha nossa senhora!

É verdade, Paulo André: a saudade é um vazio cheio de tudo!

Grande beijo, meu amor

Sua arruda tá linda, linda, linda! A sua e a do Marcinho tão lindas!

Teuda 

Para o meu amigo Arildo de Barros:

Querido amigo e parceiro de trabalho no Grupo Galpão.

Que bela dupla formamos no teatro, hein!

Já fomos amantes na peça “Um Trem Chamado Desejo”: com nossos personagens Sandoval e Gracinha fazíamos cenas que iam de beijo até tapa na cara. Kkk

E também amantes no espetáculo “ Um Homem é um Homem “ com os personagens sargento Fairchild e Begbick .

Recortei um trecho da peça “Um Homem é um Homem” para compartilhar com você a lembrança do diálogo que fizemos juntos em cena . Obrigada amado companheiro pelos bons momentos que passamos juntos .

(Begbick pega o trombone e começa a tocar uma música sensual. É o canto da sereia para atrair o Sargento. Trovões e relâmpagos. Alterado pelo tempo de chuva e atraído pelo canto da Viúva, entra o Sargento Fairchild.)

 

FAIRCHILD – Não me coma com os olhos, Babilônia em escombros. As coisas não vão nada bem para mim. Há três dias durmo numa cama de pregos e tomo banho gelado, tomado por essa volúpia desenfreada justamente agora que mais preciso de meu autocontrole para desvendar um crime sem precedentes em toda a história do exército.

BEGBICK – Cincão Sanguinário, vem. Segue os impulsos de tua potente natureza. Se ninguém te vê… quem vai saber? E nos pelos e cheiros do meu corpo, no meu sovaco, entre minhas pernas, vem conhecer o homem-bicho que tu és. Vem como o que te dá mais medo: como um homem! Como a natureza te fez: selvagem, enredado em ti mesmo, escravo indefeso de tua própria força. O homem é isso! Vem!

FAIRCHILD – Nunca! A decadência da humanidade começou quando o primeiro bárbaro se esqueceu de fechar a braguilha. O regulamento militar tem lá suas falhas, mas é o único no qual podemos nos apegar como seres humanos. Porque nos dá firmeza e assume a responsabilidade de nossos atos diante de Deus. Hoje não vai chover! O exército é bom, o homem é que não vale nada.

 

(Toque de clarim. Ao fundo ouve-se a chamada dos soldados.)

 

BEGBICK – Não vai acompanhar a chamada dos recém-chegados?

FAIRCHILD – Daqui tenho um posto de observação mais reservado. Vamos ver se meu instinto de detetive está correto.  

 

BEGBICK – Meu caro Furacão do Alabama, se vier me procurar esta noite só o recebo se puser seu traje de amante latino.

FAIRCHILD – Nunca! Nunca mais me verá nesse estado anormal de um cidadão civil.

BEGBICK – Pois eu garanto, que quando as chuvas começarem a cair, você, o Cincão Sanguinário, será benevolente com as fraquezas humanas, por que você, queira ou não, é o homem mais obcecado por sexo que existe na face da terra.

FAIRCHILD – Pois fique certa, minha senhora, que antes que isso aconteça, eu saberei cortar o mal pela raiz.

(Saem. Entra um homem cantando um bolero. Está de chapéu meio de banda, à la Gardel, terno de risca de giz, sapatos carrapeta bicolor. É o Sargento Fairchild, que canta com emoção até chegar às lágrimas.)

 

 

Bolero

 

“Siempre fuiste la razón de mi existir,

adorarte para mi fue religión

y en tus besos yo encontraba

el calor que me brindaba,

el amor y la passion

 

(Besame, besame mucho)

Es la historia de un amor

como no hay otro igual

que me hizo comprender

todo el bien todo el mal

(Como si fuera esta noche la ultima vez, besame)

que le dio luz a mi vida,

apagándola después.

(Besame, besame mucho)

Ay que vida tan oscura corazón,

(Que tengo miedo perderte después)

Sin tu amor no viviré.”

 

(O Sargento é literalmente devorado pela Viúva Negra que o faz desaparecer atrás das cortinas da cama)

                                   

CENA 8 – Na cantina

 

(Amanhece. Um galo canta. Tiro. Um soldado entra com uma bandeira. Toque de corneta. O soldado hasteia a bandeira. O Sargento Fairchild sai do vagão da Viúva Begbick semivestido, capa, sapatos nas mãos.)

 

FAIRCHILD – Ai, perdi a hora! Que vergonha! Perdi o toque da Alvorada, um dos maiores momentos da vida militar. Perdi a honra, perdi tudo! Eu, o tigre de Dag-Bah, o guardião da disciplina, mais uma vez fui cair nas armadilhas dessa filha de Sodoma.

BEGBICK – Carmelo de Guadalupe Fairchild!

FAIRCHILD – Fairchild! Sargento Fairchild!

BEGBICK – Hasta pronto, Carmelo!

FAIRCHILD – Até nunca mais, Babilônia embalsamada!

 

(Sai se esgueirando pelos cantos para não ser visto.)

URIA – Viúva Begbick, faça alguma coisa para que ele não meta o nariz nos nossos assuntos.

BEGBICK – Vai ser fácil, o tempo continua chuvoso e quem vem aí é um civil.

TODOS – Civil?

 

(Entra Fairchild vestido à paisana)

 

FAIRCHILD – Ah, você está aí, Gomorra embalsamada.

SOLDADO – Cala a boca, civil! (Risos debochados da soldadesca)

FAIRCHILD – Olha a roupa que eu estou vestindo, tudo isso, essa vergonha, para dormir com você, Messalina.  E isto aqui em cima de minha cabeça, isto é digno da minha lenda? (Um soldado pega o chapéu do sargento) E vocês, cambada de vagabundos, vão rindo agora porque vocês vão chorar muito nas minhas mãos. Eu quero beber, eu preciso beber. Vocês vão ser esmagados como moscas, ou eu não me chamo Cincão Sanguinário.

URIA – Sargento, como é que conseguiu esse nome?  

FAIRCHILD – Cincão Sangrento? Posso contar, senhora Viúva Begbick?

BEGBICK – Conte, meu tigre de Dagbá!

FAIRCHILD – Muito bem. Aqui está rio Mekong, Vietnam. Aqui estão cinco prisioneiros, com as mãos amarradas nas costas. Então eu chego, sozinho, sem medo nenhum, apenas com um simples revólver na mão, brinco com a arma passando na cara deles e digo: “Este revólver já falhou mais de uma vez, eu tenho de experimentar. Assim”. E aponto para a cabeça do primeiro: Bang! O bicho cai sem nem um ai. Faço o mesmo com o segundo, beng!, E com o terceiro, bing, e bong, e bung! Cinco vezes. Cincão Sanguinário. Apenas isso, meus senhores. 

JESSE – Seu civil idiota!

TODOS – Civil!

FAIRCHILD – Civil, não! Eu não sou civil… Eu já nem sei mais direito quem eu sou?…

Diz para esta filha de Sodoma, nunca mais vai tocar em mim…

BEGBICK – Nunca mais, meu sangrento?

FAIRCHILD – Nunca mais!

BEGBICK – Então nunca mais, minha Cucaracha!

TODOS – Cucaracha?

FAIRCHILD – Cucaracha, não! Eu ainda sei quem sou. Eu sou o Tigre de Kilkoa, o Leão de Dagbá, o Furacão Asiático, o Cincão Sanguinário! O Fodão da Mesopotâmia!

 

(Ouve-se um trovão)

 

TODOS – Ollha a chuva, Carmelo!

FAIRCHILD – Pouco me importa que chova ou que faça sol. É tudo muito simples. É mais fácil do que parar de fumar. Nunca mais vou gastar um centavo com mulher. Estarei livre de qualquer tentação. (Vai saindo de cena. saca um revólver ao mesmo tempo que completa a frase) Se teu olho te faz pecar…arranca-o! Corte o mal pela raiz. Vejam como se faz um guerreiro completo. (Tiro!)

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Abração amigo, 

Simone

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